terça-feira, 9 de dezembro de 2014

BRICS para quem?


Por Nathalie Beghin
Os BRICS – acrônimo que diz respeito ao agrupamento de cinco países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – representam uma incógnita. Por um lado, expressam a insatisfação de economias que vêm ganhando destaque no cenário internacional com a atual conformação da governança global. São atores relevantes no tabuleiro político internacional cujas vozes nem sempre são escutadas a contento por aqueles que ocupam os espaços de poder mundial, especialmente Estados Unidos, União Europeia e Japão, e desse ponto de vista têm sido uma articulação geopolítica relevante no cenário mundial. Analistas preveem que em 2015 os BRICS serão responsáveis por cerca de um quarto do PIB mundial e poderão vir a ser as potências globais de 2050.
Mas, por outro lado, o expressivo crescimento desses países não tem se revertido em melhorias das condições de vida de seus povos à imagem e semelhança da pujança econômica. Pior: com exceção do Brasil, as desigualdades sociais aumentaram significativamente no bloco. Ou seja, a riqueza gerada não está sendo distribuída com justiça social, ao contrário, são poucos o que dela se beneficiam.
Ainda que a pobreza tenha diminuído em praticamente todos os casos, especialmente na China, os demais indicadores sociais ostentados por esses países deixam muito a desejar: a informalidade no mercado de trabalho atinge mais de 40% da população economicamente ativa de Brasil, Índia e África do Sul. Com isso, milhões de trabalhadores não têm acesso aos direitos básicos atrelados ao trabalho como seguro desemprego, aposentadoria e pensão, licenças maternidade e paternidade, entre outros, estando longe do conceito de trabalho decente consolidado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. São milhões de homens e mulheres largados a sua própria sorte, dependendo da assistência privada, da ajuda mútua ou de programas pontuais eventualmente implementados pelos seus governos.
A baixa cobertura de sistemas de proteção social se reflete nos elevados índices de mortalidade infantil, pouco compatíveis com o tamanho das economias desses países. No Brasil e na China esses índices estão em torno de 20 mortes por mil crianças nascidas vivas, mais de seis vezes os valores apresentados por países como Japão, Suécia e Noruega – menos de 3 por mil. Na Índia e na África do Sul a mortalidade infantil atinge patamares assustadores, de mais de 60 por mil. Ainda que a Rússia se encontre em melhor posição, os indicadores de mortalidade infantil são superiores a 10 por mil. Por outro lado, a esperança de vida ao nascer na Rússia é da ordem de 68 anos, não muito distante do verificado para a Índia, de cerca de 65 anos. Nos países nórdicos, esses valores são superiores a oitenta anos. A esperança de vida ao nascer é uma excelente medição do acesso (ou não) das populações a direitos básicos como alimentação, saúde, saneamento, habitação e educação, entre outros. No Brasil e na China, onde as políticas públicas são um pouco mais estruturadas, a esperança de vida passa dos 73 anos. Na África do Sul, com enorme dívida social, vive-se, em média, pouco mais de 50 anos.
Os níveis educacionais não apresentam perfil muito diferente: em nenhum dos cinco países os adultos apresentam pelo menos 10 anos de estudo em média. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse indicador é superior a 13 anos. Na Rússia o indicador é de cerca de 9, no Brasil e na China gira em torno de 7 e na Índia, os adultos têm, em média, apenas 4 anos de estudo.
Diante desse quadro, a pergunta que não quer calar é: BRICS para quem? Quem se beneficia dessa extraordinária riqueza que vem sendo gerada nos últimos anos?
Certamente que a absoluta maioria dos povos dos BRICS não. Se bem é verdade que os indicadores sociais vêm melhorando, o ritmo é mais o reflexo da inércia do que resultado de vultosos investimentos destinados a redistribuir os ganhos obtidos por um crescimento que impressiona a todos. O modelo de desenvolvimento adotado por esses países até o momento reproduz desigualdade. Mesmo no Brasil, onde a situação melhorou como resultado de políticas públicas redistributivas implementadas nos últimos anos, o país continua pertencendo ao vergonhoso clube das sociedades mais desiguais do mundo.
Daí a urgência das organizações e movimentos sociais desses diferentes países pressionarem seus governos, individualmente, e o bloco como um todo, para que adotem medidas de efetiva inclusão social e universalização dos direitos humanos. Entendemos que o desenho e a implementação de políticas públicas dessa natureza, tanto nacionalmente como internacionalmente, devem levar em conta as demandas da sociedade por meio de mecanismos de participação social institucionalizados. Nesses espaços, a relação público/privado se estabelece, materializando princípios da democracia representativa e participativa e, consequentemente, assegurando a predominância do interesse público.
O Brasil que, desse ponto de vista se destaca no cenário internacional, poderia ser portador dessa mensagem atuando, simultaneamente, em duas frentes: internamente, criando o Conselho Nacional da Política Externa Brasileira, locus do debate com a sociedade sobre sua inserção nos BRICS, entre outros assuntos atrelados à política externa nacional; e, internacionalmente, levando ao bloco a proposta de criação de espaço institucional de participação social envolvendo organizações e movimentos sociais dos cinco países. Essa proposta é factível, uma vez que os BRICS já criaram o Fórum Empresarial e o Fórum Acadêmico. Se os empresários e os acadêmicos têm voz, não há nada que justifique não estender essa prerrogativa aquelas e aqueles que lutam há décadas por um mundo mais justo e inclusivo, economicamente, socialmente e ambientalmente. Talvez assim os BRICS consigam ser os “BRICS dos povos”, os “BRICS dos 99%”.
*Nathalie Beghin é integrante do Instituto de Estudos Socioeconomicos (INESC), da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP) e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI)
Fonte: cartacapital.com.br

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Na América Latina, baixo crescimento frustra as classes médias

Há algumas semanas no Uruguai, um internauta que se identifica como Juan Clasemedia denuncia na internet as "desventuras" vividas pelas classes médias da América Latina, que se sentem frustradas com a deficiência dos serviços públicos e preocupadas com a lentidão do crescimento econômico na região.
Juan Clasemedia, que "espera três meses para se consultar com um médico especialista" e que "a cada domingo paga mais caro no supermercado", conta seus dramas de classe em um vídeo de animação publicado na internet. O personagem fictício, que tem conta no Twitter, foi criado pelo pequeno Partido Independente uruguaio, que aumenta sua base aproveitando-se do descontentamento desta camada da sociedade.
Em dez anos, mais de 50 milhões de latinoamericanos saíram da pobreza e ganharam status de classe média, com rendas individuais entre 10 e 50 dólares por dia, segundo a definição do Banco Mundial.
"O que chamamos de classe média é trinta e muitos por cento da população, que agora tem a capacidade econômica e o poder aquisitivo para comprar bens duráveis, geladeiras, televisões, automóveis", explica o equatoriano Augusto de la Torre, economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina.
A emergência da classe média resultou, por exemplo, no boom de vendas de motos no nordeste do Brasil e na grande procura por aulas de inglês on-line na Venezuela, além de uma explosão no número de usuários de internet e de smartphones.
Mas, por outro lado, gerou frustrações, um mecanismo lógico, segundo o economista: "o poder aquisitivo vem na frente da qualidade dos serviços públicos".
"A nossa vida melhorou, claro que sim", disse à AFP Cida Alves, dona de casa brasileira de 46 anos no bairro de Itaquera, São Paulo. "Mas a saúde pública, por exemplo, é terrível, nunca temos atendimento rápido", reclamou.
As manifestações que levaram mais de 1 milhão de brasileiros às ruas em junho de 2013 para exigir serviços públicos de qualidade, também foram fortes no Chile, na Colômbia e na Venezuela.
"A classe média se transforma em (um grupo de) cidadãos demandantes", observa Gabriel Kessler, sociólogo argentino da Universidade de La Plata, porque "os bens coletivos como educação, saúde, transportes, não melhoram da mesma forma que o seu acesso ao consumo".
Consequentemente, aumentam as críticas: "Apostou-se muito no consumo individual e não houve melhoras na mesma proporção em infraestruturas e bens coletivos, como saúde e educação".
A frustração da classe média pode aumentar com a desaceleração da economia. Brasil e Argentina acabam de entrar em recessão, e o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um crescimento regional de 1,3% em 2014, o mais fraco desde 2009.
Esse é um contexto preocupante para uma classe média já frágil, destaca Olivier Dabène, professor da faculdade de Ciência Política em Paris e presidente do Observatório Político para América Latina e Caribe (Opalc). "Não é o que chamamos na Europa de classe média", explica, mas de "pessoas que tiveram acesso ao emprego formal e permanecem em uma situação vulnerável podendo voltar à pobreza caso percam o emprego".
"São vulneráveis, já que essas pessoas vivem um frenesi de consumismo e estão endividadas", explica. "Vimos muitas reportagens sobre algumas que, de uma só vez, podem comprar uma geladeira e uma moto. Mas não é explicado que, para isso, se endividaram com 12 parcelas de crediário, e que às vezes devolvem o produto na décima mensalidade porque não podem pagar".
Do ponto de vista social, o Banco Mundial não teme "uma reversão", mas, sim, uma "estagnação", o que parece frustrar uma classe média acostumada a progredir rapidamente. "Estamos condenados a anos de transição difíceis, em que haverá tensão entre as expectativas sociais e a capacidade de atendê-las", diz Augusto de la Torre, que aponta para uma ênfase na produtividade e na educação para reativar o crescimento.
Por Katell Abiven

Fonte: www.cartacapital.com.br

domingo, 14 de setembro de 2014

50 verdades sobre a Revolução Cubana


Símbolo dos desejos de independência da América Latina e do Terceiro Mundo, a Revolução Cubana marcou a história do século XX 
por Salim Lamrani,*

1. O triunfo da Revolução Cubana, no dia 1 de janeiro de 1959, é o acontecimento mais relevante da história da América Latina no século XX.

2. As raízes da Revolução Cubana remontam ao século XIX e às guerras de independência.

3. Durante a primeira guerra de independência, de 1868 a 1878, o exército espanhol derrotou os insurgentes cubanos atolados em profundas divisões internas. Os Estados Unidos apoiaram a Espanha, vendendo ao país armas mais modernas e se opôs aos independentistas perseguindo os exilados cubanos que tentavam dar sua contribuição à luta armada. No dia 29 de outubro de 1872, o secretário de Estado Hamilton Fish compartilhou com Daniel Sickles, então embaixador estadunidense em Madrid, seus “desejos de êxito para a Espanha na supressão da rebelião”. Washington, contrário à independência de Cuba, desejava tomar posse da ilha.

4. Cuba é efetivamente uma das mais antigas inquietudes da política exterior dos Estados Unidos. Em 1805, Thomas Jefferson observou a importância da ilha, salientando que sua “posse [era] necessária para assegurar a defesa de Luisiana e da Flórida porque [era] a chave do Golfo do México. Para os Estados Unidos, a conquista seria fácil”. Em 1823, John Quincy Adams, então Secretário de Estado e futuro presidente dos Estados Unidos fez alusão ao tema da anexação de Cuba e elaborou a teoria da “fruta madura”: “Cuba, separada pela força de sua própria conexão desnaturalizada com a Espanha, e incapaz de sobreviver por si própria, terá necessariamente que gravitar ao redor de união norte-americana, e unicamente ao redor dela”. Assim, durante o século XIX, os Estados Unidos tentaram 6 vezes comprar Cuba da Espanha.

5. Durante a segunda guerra de independência, entre 1885 e 1898, os revolucionários cubanos, unidos em volta de seu líder José Martí, tiveram de enfrentar outra vez a hostilidade dos Estados Unidos, que deu sua ajuda à Espanha vendendo-lhe armas e prendendo os exilados cubanos que tentavam apoiar os independentistas.

6. José Martí, em uma carta profética ao seu amigo Gonzalo de Quesada, escrita no dia 14 de dezembro de 1889, advertiu sobre a possibilidade de uma intervenção estadunidense. “Sobre a nossa terra, Gonzalo, há outro plano mais tenebroso [....]: a iníqua de forçar a Ilha, de precipitá-la à guerra, para ter o pretexto de intervir nela, e com o crédito de mediador e  garantidor, ficar com ela”.

7. Em 1898, apesar de sua superioridade material, a Espanha estava à beira do abismo, vencida no campo de batalha pelos independentistas cubanos. Em uma carta ao presidente estadunidense William McKinley, datada de 9 de março de 1898, o embaixador Woodford, de Madrid, disse que “a derrota” da Espanha era “segura”. “[Os espanhóis] sabem que perderam Cuba”. Segundo ele, “se os Estados Unidos desejam Cuba, devem consegui-la mediante a conquista”.

8. Em abril de 1898, depois da explosão misteriosa do navio de guerra estadunidense The Mainena baía de Havana, o presidente McKinley solicitou autorização do Congresso para intervir militarmente em Cuba e impedir que a ilha conseguisse sua independência.

9.Vários congressistas denunciaram uma guerra de conquista. John W. Daniel, senador democrata do estado da Virginia, acusou o governo de intervir para evitar uma derrota dos espanhóis: “Quando chegou a hora mais favorável para um êxito revolucionário e a mais desvantajosa para a Espanha, [...] se exige ao congresso dos Estados Unidos entregar o exército dos Estados Unidos ao Presidente para impor um armistício pela força às duas partes, enquanto uma delas já entregou as armas”

10. Em três meses, os Estados Unidos tomaram controle do país. Em dezembro de 1898, os Estados Unidos e a Espanha assinaram um tratado de paz em Paris sem a presença dos cubanos, destroçando assim seu sonho de independência.

11. De 1898 a 1902, os Estados Unidos ocuparam Cuba e obrigaram a Assembleia Constituinte a adotar a emenda Platt na nova Constituição, sob pena de prorrogar a ocupação militar.

12. A emenda Platt proibia Cuba de assinar qualquer acordo com um terceiro país ou contrair dívida com outra nação. Também dava direito aos Estados Unidos de intervir em qualquer momento nos assuntos internos de Cuba e obrigava a ilha a conceder indefinidamente a Washington a base naval de Guantánamo.

13. Em uma carta de 1901, o general Edward Wood, então governador militar de Cuba, parabenizou o presidente McKinley. “Desde então há pouca ou nenhuma independência para Cuba sob a emenda Platt e a única coisa importante agora é buscar a anexação”.

14. De 1902 a 1958, Cuba tinha o status de república neocolonial, política e economicamente dependente, apesar da revogação da emenda Platt em 1934, então obsoleta.

15. Os Estados Unidos interviram militarmente em Cuba em 1906, 1912, 1917 e 1933, depois da queda do ditador Gerardo Machado, e cada vez que um movimento revolucionário ameaçava o status quo.

16.  A Revolução de 1933, liderada por Antonio Guiteras, foi frustrada pela traição de um sargento chamado Fulgencio Batista, que se tornou general e colaborou com a embaixada dos Estados Unidos para manter a ordem estabelecida. Dirigiu o país nos bastidores até sua eleição como presidente em 1940.

17. Depois das presidências de Ramón Grau San Martín (1944-1948), e Carlos Prío Socarrás (1948-1952), gangrenadas pela violência e pela corrupção, Fulgencio Batista pôs fim à ordem constitucional no dia 10 de março de 1952, orquestrando um golpe de Estado militar.

18. No dia 26 de junho de 1953, um jovem advogado chamado Fidel Castro, membro do Partido Ortodoxo fundado por Chibás, se pôs à frente de uma expedição de 131 homens e atacou o quartel Moncada na cidade de Santiago, a segunda fortaleza militar do país, assim como o quartel Carlos Manuel de Céspedes, na cidade de Bayamo. O objetivo era tomar o controle da cidade — berço histórico de todas as revoluções — e lançar um chamado à rebelião em todo o país para derrubar o ditador Batista.

19.  A operação foi um fracasso e numerosos combatentes — 55 no total — foram assassinados depois de serem brutalmente torturados pelo exército. De fato, apenas 6 deles morreram em combate. Alguns conseguiram escapar graças ao apoio da população.

20.  Fidel Castro, capturado alguns dias depois, deveu a vida ao sargento Pedro Sarría, que se negou a seguir as ordens de seus superiores e executar o líder de Moncada. “Não disparem! Não disparem! As ideias não se matam!”, exclamou frente a seus soldados.

21.  Durante sua histórica alegação intitulada “A História me Absolverá”, Fidel Castro, que se encarregou de sua própria defesa, denunciou os crimes de Batista e a miséria em que se encontrava o povo cubano e apresentou seu programa para uma Cuba livre.

22.  Condenado a 15 anos de prisão, Fidel Castro foi liberado em 1955 depois da anistia que lhe concedeu o regime de Batista e se exilou no México, onde organizou a expedição de Granma, com um médico argentino chamado Ernesto Guevara.

23.  No dia 2 de dezembro de 1956, Fidel Castro desembarcou na província oriental de Cuba comandando 81 revolucionários com o objetivo de desatar uma guerra de guerrilhas nas montanhas de Sierra Maestra.

24.  Ao contrário do que se diz, os Estados Unidos jamais deram apoio ao Movimento 26 de Julho, organização político-militar dirigida por Fidel Castro, durante toda a guerra insurrecional, de 2 de dezembro de 1956 a 1 de janeiro de 1959.

25.  Ao contrário, Washington perseguiu cruelmente todos os simpatizantes do Movimento 26 de Julho exilados nos Estados Unidos, que tentavam fornecer armas aos rebeldes.

26.  Ao mesmo tempo, o Presidente Dwight D. Eisenhower seguiu fornecendo armas ao exército de Batista, inclusive depois da instauração do embargo de fachada, em março de 1958.

27.  No dia 23 de dezembro de 1958, a uma semana do triunfo da Revolução, enquanto o exército de Fulgencio Batista estava em plena debandada apesar de sua superioridade em armas e homens, aconteceu a 392ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, com a presença do presidente Eisenhower. Allen Dulles, então diretor da CIA, expressou claramente a posição dos Estados Unidos: “Temos de impedir a vitória de Castro”.

28. Assim como aconteceu em 1898, o Presidente Eisenhower estava a favor de uma intervenção armada para impedir o triunfo de Fidel Castro. Perguntou se o Departamento de Defesa tinha pensado em uma “ação militar que poderia ser necessária em Cuba”. Seus assessores tiveram êxito em dissuadi-lo.

29. Assim, a hostilidade dos Estados Unidos para com a Revolução Cubana não tem nada a ver com o contexto da Guerra Fria. Começou antes de Fidel Castro chegar ao poder, antes da aliança com Moscou, em maio de 1960, e continuou depois de desaparição do bloco soviético em 1991.

30. No dia primeiro de janeiro de 1959, cinco anos, cinco meses e cinco dias depois do ataque ao quartel Moncada no dia 26 de julho de 1953, a Revolução Cubana triunfou.

31. Em janeiro de 1959, os Estados Unidos acolheram com os braços abertos os partidários do antigo regime, incluindo os criminosos de guerra, que haviam roubado 424 milhões de dólares do Tesouro cubano.

32.  Desde o começo, a Revolução Cubana teve de edificar seu projeto de sociedade em um contexto de estado de sítio permanente, frente à crescente hostilidade dos Estados Unidos. Desde 1959, Cuba nunca desfrutou de um clima de paz para construir seu futuro. Em abril de 1961, Cuba teve de enfrentar a invasão armada da Baía dos Porcos organizada pela CIA, e em outubro de 1962, a ilha foi ameaçada de desintegração nucelar durante a crise dos mísseis.

33.  Desde 1959, os Estados Unidos, decididos a derrotar Fidel Castro, deram início a uma campanha de terrorismo contra Cuba com mais de 6 mil atentados, que custaram a vida de 3478  civis e incapacitaram 2099 pessoas. Os danos materiais são avaliados em vários bilhões de dólares e Cuba teve de gastar somas astronômicas em sua segurança nacional, o que limitou o desenvolvimento dos programas sociais. O próprio líder da Revolução foi vítima de 637 tentativas de assassinato.

34. Desde 1960, Washington impõe sanções econômicas sumariamente severas, ilegais de acordo com o Direito Internacional, que afetam as categorias mais vulneráveis da população, ou seja, as mulheres, as crianças e os idosos. Este estado de sítio, condenado pela imensa maioria da comunidade internacional (188 países de 192), constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento da ilha, que a Cuba custou mais de um bilhão de dólares.

35. Apesar de todos esses obstáculos, a Revolução Cubana é um inegável êxito social. Ao dar prioridade aos mais desfavorecidos com a reforma agrária e com a reforma urbana, ao erradicar o analfabetismo, ao desenvolver a educação, a saúde, a cultura e o esporte, Cuba criou a sociedade mais igualitária do continente e do Terceiro Mundo.

36. De acordo com a UNESCO, Cuba tem a mais baixa taxa de analfabetismo e a mais alta taxa de escolarização da América Latina. A organização das Nações Unidas nota que “a educação tem sido prioridade em Cuba há [mais de] 40 anos. É uma verdadeira sociedade de educação”. Seu relatório sobre a educação em 13 países da América Latina classifica Cuba como primeira em todas as disciplinas. De acordo com a UNESCO, Cuba é a nação do mundo que usa a maior parte de seu orçamento em educação, cerca de 13% do PIB.

37. Cuba tem uma taxa de mortalidade infantil de 4,6 por mil, ou seja, a mais baixa do continente americano, mais baixa que a do Canadá ou a dos Estados Unidos.

38.  Cuba é a nação que tem o maior número de médicos per capita do mundo. Segundo o New England Journal of Medicine, a revista médica mais prestigiada do planeta, “o sistema de saúde [de Cuba] resolveu problemas que o nosso [o dos Estados Unidos] não conseguiu resolver”. A revista destaca que “Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante que os Estados Unidos”.

39. Segundo a UNICEF, “Cuba é um exemplo na proteção da infância” e um “paraíso para a infância na América Latina”, e enfatiza que Cuba é o único país da América Latina e do Terceiro Mundo que erradicou a desnutrição infantil.

40. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Cuba é o único país da América Latina e do Terceiro Mundo que se encontra entre as dez nações do mundo com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano sobre os três critérios: expectativa de vida, educação e nível de vida, durante a última década.

41. A Revolução Cubana fez da solidariedade internacional um pilar essencial de sua política exterior. Cuba acolhe dezenas de milhares de estudantes procedentes de países pobres, lhes oferece formação universitária gratuita de alto nível e se encarrega de todos os gastos. A Escola Latino-americana de Medicina de Havana é uma das mais famosas do continente americano e formou vários milhares de profissionais de saúde procedentes de mais de 123 países.

42. Desde 1963 e da primeira missão internacionalista na Argélia, cerca de 132 mil médicos  cubanos e outros funcionários de saúde trabalharam voluntariamente em 102 países. Atualmente, 38.868 médicos colaboradores, entre eles 15.407 médicos, oferecem seus serviços em 66 nações do Terceiro Mundo.

43. Graças à Operação Milagre lançada por Cuba em 2004, que consiste em operar gratuitamente populações pobres vítimas de doenças oculares, cerca de 2,5 milhões de pessoas de 28 países recuperaram a visão.

44. O programa de alfabetização cubano “Sim, eu posso” (“Yo, sí puedo”), lançado em 2003, permitiu que 7 milhões de pessoas dos cinco continentes aprendessem a ler, escrever e somar.

45. De acordo com a World Wild Fund for Nature (WWF), organização mais importante de defesa da natureza, Cuba é o único país do mundo que alcançou um desenvolvimento sustentável.

46. Cuba desempenhou um papel chave na luta contra o apartheid, com a participação de 300 mil soldados em Angola entre 1975 e 1988 para enfrentar a agressão do exército suprematista sul-africano.  O elemento decisivo que pôs fim ao apartheid foi a abrupta derrota militar que as tropas cubanas infringiram ao exército sul-africano em Cuito Cuanavale, no sudeste de Angola, em janeiro de 1988. Em um discurso, Nelson Mandela rendeu homenagem a Cuba: “Sem a derrota infringida em Cuito Cuanavale, nossas organizações não teriam sido legalizadas! A derrota do exército racista em Cuito Canavale tornou possível que hoje eu possa estar aqui com vocês! Cuito Cuanavale é um marco na história da luta pela libertação da África Austral!”.

47. Ao contrário do que se diz, a Revolução Cubana teve quatro presidentes diferentes: Manuel Urrutia, de janeiro de 1959 a julho de 1959, e Osvaldo Dorticós, de julho de 1959 a janeiro de 1976, sob o antigo regime da Constituição de 1940, e Fidel Castro, de fevereiro de 1976 a julho de 2006, e Raúl Castro, desde 2006, depois da adoção da Constituição de 1976.

48. A imprensa ocidental, propriedade de conglomerados econômicos e financeiros, vilipendia a Revolução Cubana por uma razão muito precisa que não tem nada a ver com a democracia ou os direitos humanos: o processo de transformação social iniciado em 1959 sacudiu a ordem das estruturas estabelecidas, levou a juízo o poder dos dominantes e propõe uma alternativa social onde os recursos são destinados à maioria e não à minoria.

49. A principal conquista da Revolução é ter feito de Cuba uma nação soberana e independente.

50. A Revolução Cubana, edificada por várias gerações de cubanos, possui todas as virtudes e defeitos da condição humana e nunca teve a pretensão de ser um modelo. Segue sendo, apesar das dificuldades, um símbolo de dignidade e resistência no mundo.

Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. 

Fonte: www.operamundi.uol.com.br

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Haiti: quatro anos após o terremoto, nada mudou


A reconstrução após a tragédia que matou 240 mil pessoas em 2010 inexiste. Violência, falta de água e eletricidade tornam a vida nos acampamentos ainda mais difícil


 

A cada dois dias, Florence Porissaint sai de seu precário barraco no acampamento de Icare, perto de Forte Nacional, em busca de água por Porto Príncipe. A caminhada de 40 minutos rende um balde cheio que suprirá as necessidades da neta e da filha, com quem vive, por pouco mais de um dia. O suplício por qual passa é parte da rotina da Florence e de outros 137 mil haitianos que ainda vivem em acampamentos depois de terem perdido suas casas no terremoto de 2010.

Quatro anos depois da tragédia que deixou 240 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados, a reconstrução do país e da vida daqueles que perderam suas casas é inexistente. A mobilização parece ter ficado na força tarefa inicial para o envio de ajuda humanitária e a remoção dos escombros. Um dos cartões postais do Haiti, o Palácio Presidencial foi demolido à espera de seu reerguimento. A Catedral Notre Dame continua com sua parte superior destruída. Pelo centro da cidade, casas e edifícios abalados pelo tremor permanecem arruinados, aumentando a sensação de abandono crônico e pobreza que imperam em Porto Príncipe.

“Pensávamos que ficaríamos aqui por um período curto, mas desde o terremoto ninguém do governo dá as caras”, conta Florence, que vive em um barraco de 2 metros quadrados com a filha e a neta. “Não temos água, não temos comida. Vivemos como animais”.

A mesma insegurança abate seus vizinhos. Em Icare, 500 pessoas se apertam em microbarracos construídos com chapas de zinco, plástico e pedaços de madeira. O espaço tomado pelo esgoto a céu aberto e pelo lixo acumulado na entrada competem com o conquistado por moradores locais que vendem frutas e comida no chão.

Precariamente improvisadas, as “casas” chegam a abrigar dez pessoas. Os moradores, que não têm acesso a energia elétrica ou saneamento básico, dificilmente fazem mais de uma refeição por dia. Não são raros os relatos de adultos e crianças que chegaram a ficar, inclusive, uma semana sem comer.

O improviso é parte do cotidiano. Para sobreviver e conseguir manter a moradia de 3 metros quadrados em que vive com a mulher e cinco filhos, Lindor Cherisnord, 39 anos, trabalha carregando sacos de arroz ou cimento, o que lhe rende cerca de dois dólares por dia. “É como eu consigo me defender. Aqui não temos ajuda do governo, não nos dão comida nem água”, diz ao ressaltar o aumento da violência sexual e de outros crimes como roubo ou latrocínio nas microvielas que separam um barraco do outro. “Talvez seja o destino ficar aqui até morrer”.

Portador de uma deficiência que o faz cadeirante, Charles Robiou), 34 anos, vive há quatro anos com a mãe, duas irmãs e duas sobrinhas no mesmo local em que vendem frango, manteiga, doces e ervas – tudo sem refrigeração, descoberto e com moscas. Para piorar, o calor cruel sob o telhado de zinco faz os 40 graus do lado de fora parecerem 50. “Montamos a vendinha com o dinheiro que recebemos de uma ONG para ajudar na retirada dos escombros. Mas aqui não temos dignidade, não há banheiro, não há água. E quando chove, uma água suja sobe e inunda a nossa casa”.

As casas, com chão de terra, roupas penduradas em varais sobre as camas e portas de chapa de metal se mesclam à paisagem composta por crianças sem roupa, idosos famintos e a pouca comida preparada em estruturas escassas, onde o poder público não circula e as tropas da missão da ONU não patrulham.

“Não há um dia que seja fácil. E, para agravar as coisas, convivemos diariamente com a violência, no acerto de contas entre rivais e nos estupros”, conta Thermidores Terméus, 22 anos, que vive com a mulher Immanuelle, 19 anos, e a bebê Estessy, de 2 anos (foto abaixo).

É também nos acampamentos que a rivalidade entre gangues volta a compor a rotina dos haitianos. Sem iluminação pública, ninguém se arrisca a caminhar pelas vielas entre barracos quando anoitece. Assim, homicídios ganham novos terrenos longe dos olhos das forças de segurança.

O governo haitiano também se ressente da reconstrução inexistente do país. Dos cerca de 10 bilhões de dólares prometidos para o Haiti em janeiro de 2010, menos de 5% passaram pelas mãos das instituições estatais ou das organizações da sociedade civil haitiana. Estima-se que metade do dinheiro tenha ficado com organismos internacionais e tenham sido gastos com ajuda humanitária, postos de trabalho de curto prazo, abrigos e remoção de escombros. Um assessor próximo ao presidente Michel Martelly e ao primeiro-ministro Laurent Lamothe lembra que à época todos queriam posar como doadores, mas apenas metade do prometido acabou sendo entregue. Apesar de aplaudir os dez anos da Minustah no país e rezar para que esses se transformem em 20, ele tece críticas ao próprio Brasil, que não teria conseguido dar um salto para além da segurança pública. “Não fico triste de o Brasil investir em Cuba e em outros países. Só fico triste de não ter investido aqui”, diz.

O organismo da ONU que deveria coordenar a reconstrução a longo prazo foi encerrado em 2012. Hoje, a maior segurança financeira do país vem do Petrocaribe, acordo com a Venezuela que garante ao Haiti 400 milhões de dólares ao ano. Mas mesmo esse esquema é incerto para as próximas décadas.

Depois do terremoto que destruiu o pouco das estruturas que restavam do país, o Haiti viu sua realidade piorar ainda mais. No fim de 2010, foi palco de um surto de cólera que matou 8.300 pessoas e contaminou mais de 650 mil. Em agosto de 2012, a tempestade tropical Isaac causou perdas agrícolas na ordem de 254 milhões de dólares e deixou 1,6 milhão de haitianos em situação de emergência.

O Haiti sempre foi um país muito pobre, cheio de surpresas. Aqui, como eles mesmos dizem, é o ‘Vivrel’inesperé’ (Viver o inesperado)”, lembra o cônsul brasileiro Vitor Hugo Irigaray. Segundo o diplomata, que trabalhou no Haiti pela primeira vez há 25 anos, a falta de infraestrutura é a maldição do país, que sofrerá com a saída das tropas estrangeiras. “O dia em que tirarem a missão, isso vai virar um caos. Eles não estão preparados, não existe uma força que possa garantir a segurança. E se não há segurança como vamos ter paz?”, questiona.
Fonte: cartacapital.com.br