Sem
flertar com o catastrofismo - não me agradam as hipérboles assustadoras -, mas
tampouco íntimo de eufemismos pueris, constato um dado crucial dos nossos dias:
vivemos num espaço-tempo inundado de caos, atravessado por uma multiplicidade
de crises: social, financeira, institucional, migratória, ideológica,
energética e ecológica. Todas de natureza estrutural e fortemente integradas
entre si. Trata-se de uma dinâmica abrangente na dimensão espacial, de enorme
profundidade temporal e de grande complexidade social, já que engloba as
esferas econômica, política, cultural e ambiental. Ainda que hesitemos em
navegar pelas águas da escatologia, é preciso reconhecer que os descaminhos
impostos à Terra pelo modo capitalista de produção ganharam contornos enigmáticos
e prenunciam uma longa noite de barbárie e desolação. Temos cada vez menos
tempo para construir uma alternativa auspiciosa para o mundo.
Entretanto,
sempre percebemos nas crises somente as facetas dos desequilíbrios e das
instabilidades, e, negligenciamos as nuances de oportunidades abertas, por
serem momentos de ampliação máxima das contradições, nos quais comumente
afloram revoluções, novos paradigmas, novas relações dos seres com o mundo,
enfim novas formas de viver. As possibilidades de êxito residem em expandir as
fronteiras dos oásis que hoje se estreitam em face da tirania dos desertos,
isto é, trata-se de materializar ideias aparentemente exóticas – como a
propriedade comum - e tornar hegemônicas noções que por hora são residuais –
como o valor de uso e a solidariedade orgânica.
A
crise social é perversa. A Terra vive uma hecatombe. Num mundo segregado e
pauperizado não pode haver equilíbrio. Segundo a Organização das Nações Unidas
(ONU), 2/3 da população do planeta sobrevive com menos 2,50 dólares por dia.
Josué de Castro dizia que a humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos
que não comem e o grupo dos que não dormem com receio da revolta dos que não
comem. Conforme a ONG britânica Oxfam divulgou no início de 2016, pela primeira
vez na história o 1% mais rico (os que não dormem) superou em renda e
patrimônio os 99% restantes (os que não comem nem dormem). Famintos e/ou
sonolentos, ninguém está se sentindo muito bem. Mas, ainda contribui para a
desintegração do “nosso belo quadro social”, a crescente precarização do
trabalho, a emergência de uma nova escravidão, a criminalização da pobreza, a
homofobia, a xenofobia, o machismo, o terrorismo e as aventuras bélicas
destruidoras de países e povos.
A
crise da economia é avassaladora e assume dois aspectos centrais: a
financeirização e o solapamento das bases da economia real. Quanto ao primeiro,
a hegemonia do liberalismo coordenou um padrão de acumulação rentista, isto é,
a extração de renda se tornou mais relevante que a própria obtenção do mais-valor.
No reino dos ativos financeiros - ações e títulos, por exemplo – há uma
tendência ao crescimento da inflação das mercadorias básicas, que de forma
concreta, matam sede, fome e frio. Quanto ao segundo aspecto, sobretudo após a
revolução industrial o “progresso” se sustenta à base da dilapidação dos
recursos naturais, desaguando num crescente encarecimento de matérias-primas e,
por consequência, no aumento dos custos de produção – não à toa, as grandes
corporações já pretendem privatizar o espaço sideral para explorar
comercialmente os bens lá existentes, como os minérios dos asteroides. Os
nossos vizinhos do espaço exterior que se cuidem, aqui os patrões já sonham com
jornada semanal de 80 horas. Além disso, tanto as recessões como a automação
geram desemprego em massa – no mundo já são quase 200 milhões de desempregados,
conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT) – fato que reduz
drasticamente o mercado consumidor, desencorajando ainda mais o combalido
capital produtivo.
A
crise política reflete – e também produz - esse estado de mal-estar social e
econômico. As eleições se transformaram num mercado de votos e a captura do
poder político pela esfera econômica implodiu a democracia liberal. Ninguém
mais acredita em instituições que representam somente uma casta privilegiada.
Quebrou o banco? O Estado salva. É crise? Corta gastos sociais para garantir o
deleite do setor rentista. É preciso transferir renda? Que seja dos de baixo
para os de cima, através do aumento dos impostos sobre os trabalhadores para
incrementar os negócios da alta burguesia. O Estado como um comitê para gerir
os negócios comuns de toda a burguesia, assertiva de Marx, nunca fez tanto
sentido. Para garantir interesses tão minoritários, só mesmo com a contínua
supressão das liberdades e direitos, tarefa fácil para um famigerado Estado de
exceção que avança em todas as direções.
Neste
sentido, o dado mais preocupante da crise política diz respeito ao avanço da
extrema-direita em todos os continentes. O fascismo é uma regulação perfeita
para uma acumulação ancorada na espoliação e para aumentar a velocidade da
carruagem humana rumo ao precipício. Como bem notou Hitler no seu retorno – no
filme “Ele está de volta”, uma ficção que dialoga bastante com a realidade – as
condições para o crescimento do neofascismo estão todas postas: desemprego,
ressentimentos, revigoramento do nacionalismo, dilemas sociais... e agora
existe a internet para recrutar os soldados. Para piorar, a esquerda ainda se
encontra fragilizada, por um lado, pelo fracasso da social-democracia e, por
outro, por ter sido confundida com o stalinismo.
A
crise cultural é um tema bastante abrangente, mas de forma sintética, podemos
afirmar que se dá em grande medida porque uma classe social, por controlar os
meios de produção de matérias e de ideias, consegue impor sua visão de mundo às
demais frações da sociedade. E é uma visão ancorada na competição e no
individualismo - “então erguemos muros que nos dão a garantia/ de que
morreremos cheios de uma vida tão vazia”, nos lembra Gesssinger - elementos
centrais das ideologias que justificam o projeto do capital, explorador e
opressor por natureza. A alienação é um tema central na dimensão cultural. O
trabalho se restringe a esfera da necessidade e serve para produzir mercadorias
que esmagam a subjetividade, a sensibilidade e a utopia. A música, o futebol, a
natureza, o sonho, a vida, enfim, tudo vira mercadoria. No lugar da criação, a
produção em série. O escasso tempo livre serve para comprar coisas, as mesmas
que nos desumanizam.
A
crise ambiental é a maior expressão do fracasso desta tal “civilização” e do
seu denominado “progresso”. Humanos, com pretensas racionalidades, consciências
e teleologias entraram numa atividade kamikaze tão intensa que naufragam sua
barca cheia de bugigangas inúteis no oceano da irracionalidade e da
autodestruição. Ao dominar e dilapidar o ambiente, oprimimos e escravizamos os
semelhantes rumo ao calvário – como suscita o filme “expresso do amanhã”, agora
precisamos de inúmeros trens eternos. Os problemas ecológicos emergem e se
intensificam a ponto de ultrapassar a capacidade suporte dos ecossistemas, isto
é, a natureza não consegue mais, por si só, se autorregenerar. O cenário é
apocalíptico: sociedades humanas comem veneno e bebem água “enriquecidas” por
coliformes fecais; peixes se alimentam da lama das “Samarcos”; pássaros bebem
as últimas gotas d’água das cacimbas do sertão; árvores, submersas por “belos
montes”, exalam metano para a atmosfera...A Terra vai ficando estranha,
desértica e inóspita.
Entretanto,
como nos ensina o mestre Milton Santos, a força dos fracos é o seu tempo lento.
Sendo a realidade contraditória, o novo se impõe. A boa notícia,
parodoxalmente, é a própria crise. Sem crises não ocorrem mudanças. Todas as
revoluções que trouxeram rupturas estruturais não brotaram de brisas suaves e
calmarias. Foram frutos de situações turbulentas, nas quais a mobilização de
energias criativas para a construção de alternativas profícuas se fez com mais
facilidade. Num momento de esgotamento histórico do capitalismo, com ameaça
real sobre todas as formas de vida existentes, a resistência se fortalece e
afloram ensaios de trajetórias sustentáveis e emancipadoras por todos os
lugares. No Brasil: a garotada secundarista em São Paulo e no Rio aponta os
caminhos da ocupação e da autogestão coletiva; os sem-tetos, indígenas e
sem-terras nos movimentos de reterritorialização; a crescente luta do movimento
LGBT contra a LGBTfobia; a primavera feminista contra os ditames da sociedade
machista e, a luta contra o golpe político. No mundo: a ocupação de fábricas
falidas pelos trabalhadores argentinos; os estudantes chilenos em movimentos
massivos a favor da educação pública; os indignados na Espanha contra o
desemprego; o occupy nos EUA contra a tirania financeira; a ocupação do parque
Gezi na Turquia contra a privatização das cidades e, os trabalhadores franceses
em greve geral contra a imposição de leis antitrabalhistas.
Para
que esta não seja a última crise, ou seja, para evitarmos que a degeneração em
curso resulte numa catástrofe final, torna-se urgente uma reorganização do
movimento socialista em escala global vislumbrando uma tomada de posição ampla
a favor de um novo modo de produção, calcado na propriedade coletiva, no bem
comum e no equilíbrio socioambiental. Novo regime de propriedade, novas
relações sociais e uma nova cosmovisão capaz de colocar a economia a serviço da
sociedade sob a regulação de um arranjo institucional sustentado por
comunidades livres e autônomas no que tange a elaboração de suas próprias leis
e na organização de seus ambientes de produção material e espiritual. Nunca foi
tão imprescindível a união internacional de todas as frações que compõe o
universo dos subalternos. Estamos diante de um capítulo decisivo da história:
ou sucumbimos nessa avalanche suicida do capital ou optamos pelos caminhos
sinuosos, porém promissores, de um verdadeiro projeto de emancipação humana.
Alargar nossas expectativas a partir de uma prática transformadora - e
iluminada pela clareza teórica - é um bom ponto de partida para assumirmos
nossos papéis de sujeitos criadores de um espaço-tempo que derrame liberdade,
amor, igualdade e felicidade. Então, façamos logo a estação revolucionária!
André
Pires Maciel, inverno/2016