quinta-feira, 11 de maio de 2017

A última crise?

Sem flertar com o catastrofismo - não me agradam as hipérboles assustadoras -, mas tampouco íntimo de eufemismos pueris, constato um dado crucial dos nossos dias: vivemos num espaço-tempo inundado de caos, atravessado por uma multiplicidade de crises: social, financeira, institucional, migratória, ideológica, energética e ecológica. Todas de natureza estrutural e fortemente integradas entre si. Trata-se de uma dinâmica abrangente na dimensão espacial, de enorme profundidade temporal e de grande complexidade social, já que engloba as esferas econômica, política, cultural e ambiental. Ainda que hesitemos em navegar pelas águas da escatologia, é preciso reconhecer que os descaminhos impostos à Terra pelo modo capitalista de produção ganharam contornos enigmáticos e prenunciam uma longa noite de barbárie e desolação. Temos cada vez menos tempo para construir uma alternativa auspiciosa para o mundo.
Entretanto, sempre percebemos nas crises somente as facetas dos desequilíbrios e das instabilidades, e, negligenciamos as nuances de oportunidades abertas, por serem momentos de ampliação máxima das contradições, nos quais comumente afloram revoluções, novos paradigmas, novas relações dos seres com o mundo, enfim novas formas de viver. As possibilidades de êxito residem em expandir as fronteiras dos oásis que hoje se estreitam em face da tirania dos desertos, isto é, trata-se de materializar ideias aparentemente exóticas – como a propriedade comum - e tornar hegemônicas noções que por hora são residuais – como o valor de uso e a solidariedade orgânica.
A crise social é perversa. A Terra vive uma hecatombe. Num mundo segregado e pauperizado não pode haver equilíbrio. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 2/3 da população do planeta sobrevive com menos 2,50 dólares por dia. Josué de Castro dizia que a humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem com receio da revolta dos que não comem. Conforme a ONG britânica Oxfam divulgou no início de 2016, pela primeira vez na história o 1% mais rico (os que não dormem) superou em renda e patrimônio os 99% restantes (os que não comem nem dormem). Famintos e/ou sonolentos, ninguém está se sentindo muito bem. Mas, ainda contribui para a desintegração do “nosso belo quadro social”, a crescente precarização do trabalho, a emergência de uma nova escravidão, a criminalização da pobreza, a homofobia, a xenofobia, o machismo, o terrorismo e as aventuras bélicas destruidoras de países e povos.
A crise da economia é avassaladora e assume dois aspectos centrais: a financeirização e o solapamento das bases da economia real. Quanto ao primeiro, a hegemonia do liberalismo coordenou um padrão de acumulação rentista, isto é, a extração de renda se tornou mais relevante que a própria obtenção do mais-valor. No reino dos ativos financeiros - ações e títulos, por exemplo – há uma tendência ao crescimento da inflação das mercadorias básicas, que de forma concreta, matam sede, fome e frio. Quanto ao segundo aspecto, sobretudo após a revolução industrial o “progresso” se sustenta à base da dilapidação dos recursos naturais, desaguando num crescente encarecimento de matérias-primas e, por consequência, no aumento dos custos de produção – não à toa, as grandes corporações já pretendem privatizar o espaço sideral para explorar comercialmente os bens lá existentes, como os minérios dos asteroides. Os nossos vizinhos do espaço exterior que se cuidem, aqui os patrões já sonham com jornada semanal de 80 horas. Além disso, tanto as recessões como a automação geram desemprego em massa – no mundo já são quase 200 milhões de desempregados, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT) – fato que reduz drasticamente o mercado consumidor, desencorajando ainda mais o combalido capital produtivo.
A crise política reflete – e também produz - esse estado de mal-estar social e econômico. As eleições se transformaram num mercado de votos e a captura do poder político pela esfera econômica implodiu a democracia liberal. Ninguém mais acredita em instituições que representam somente uma casta privilegiada. Quebrou o banco? O Estado salva. É crise? Corta gastos sociais para garantir o deleite do setor rentista. É preciso transferir renda? Que seja dos de baixo para os de cima, através do aumento dos impostos sobre os trabalhadores para incrementar os negócios da alta burguesia. O Estado como um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia, assertiva de Marx, nunca fez tanto sentido. Para garantir interesses tão minoritários, só mesmo com a contínua supressão das liberdades e direitos, tarefa fácil para um famigerado Estado de exceção que avança em todas as direções.
Neste sentido, o dado mais preocupante da crise política diz respeito ao avanço da extrema-direita em todos os continentes. O fascismo é uma regulação perfeita para uma acumulação ancorada na espoliação e para aumentar a velocidade da carruagem humana rumo ao precipício. Como bem notou Hitler no seu retorno – no filme “Ele está de volta”, uma ficção que dialoga bastante com a realidade – as condições para o crescimento do neofascismo estão todas postas: desemprego, ressentimentos, revigoramento do nacionalismo, dilemas sociais... e agora existe a internet para recrutar os soldados. Para piorar, a esquerda ainda se encontra fragilizada, por um lado, pelo fracasso da social-democracia e, por outro, por ter sido confundida com o stalinismo.
A crise cultural é um tema bastante abrangente, mas de forma sintética, podemos afirmar que se dá em grande medida porque uma classe social, por controlar os meios de produção de matérias e de ideias, consegue impor sua visão de mundo às demais frações da sociedade. E é uma visão ancorada na competição e no individualismo - “então erguemos muros que nos dão a garantia/ de que morreremos cheios de uma vida tão vazia”, nos lembra Gesssinger - elementos centrais das ideologias que justificam o projeto do capital, explorador e opressor por natureza. A alienação é um tema central na dimensão cultural. O trabalho se restringe a esfera da necessidade e serve para produzir mercadorias que esmagam a subjetividade, a sensibilidade e a utopia. A música, o futebol, a natureza, o sonho, a vida, enfim, tudo vira mercadoria. No lugar da criação, a produção em série. O escasso tempo livre serve para comprar coisas, as mesmas que nos desumanizam.
A crise ambiental é a maior expressão do fracasso desta tal “civilização” e do seu denominado “progresso”. Humanos, com pretensas racionalidades, consciências e teleologias entraram numa atividade kamikaze tão intensa que naufragam sua barca cheia de bugigangas inúteis no oceano da irracionalidade e da autodestruição. Ao dominar e dilapidar o ambiente, oprimimos e escravizamos os semelhantes rumo ao calvário – como suscita o filme “expresso do amanhã”, agora precisamos de inúmeros trens eternos. Os problemas ecológicos emergem e se intensificam a ponto de ultrapassar a capacidade suporte dos ecossistemas, isto é, a natureza não consegue mais, por si só, se autorregenerar. O cenário é apocalíptico: sociedades humanas comem veneno e bebem água “enriquecidas” por coliformes fecais; peixes se alimentam da lama das “Samarcos”; pássaros bebem as últimas gotas d’água das cacimbas do sertão; árvores, submersas por “belos montes”, exalam metano para a atmosfera...A Terra vai ficando estranha, desértica e inóspita.
Entretanto, como nos ensina o mestre Milton Santos, a força dos fracos é o seu tempo lento. Sendo a realidade contraditória, o novo se impõe. A boa notícia, parodoxalmente, é a própria crise. Sem crises não ocorrem mudanças. Todas as revoluções que trouxeram rupturas estruturais não brotaram de brisas suaves e calmarias. Foram frutos de situações turbulentas, nas quais a mobilização de energias criativas para a construção de alternativas profícuas se fez com mais facilidade. Num momento de esgotamento histórico do capitalismo, com ameaça real sobre todas as formas de vida existentes, a resistência se fortalece e afloram ensaios de trajetórias sustentáveis e emancipadoras por todos os lugares. No Brasil: a garotada secundarista em São Paulo e no Rio aponta os caminhos da ocupação e da autogestão coletiva; os sem-tetos, indígenas e sem-terras nos movimentos de reterritorialização; a crescente luta do movimento LGBT contra a LGBTfobia; a primavera feminista contra os ditames da sociedade machista e, a luta contra o golpe político. No mundo: a ocupação de fábricas falidas pelos trabalhadores argentinos; os estudantes chilenos em movimentos massivos a favor da educação pública; os indignados na Espanha contra o desemprego; o occupy nos EUA contra a tirania financeira; a ocupação do parque Gezi na Turquia contra a privatização das cidades e, os trabalhadores franceses em greve geral contra a imposição de leis antitrabalhistas.
Para que esta não seja a última crise, ou seja, para evitarmos que a degeneração em curso resulte numa catástrofe final, torna-se urgente uma reorganização do movimento socialista em escala global vislumbrando uma tomada de posição ampla a favor de um novo modo de produção, calcado na propriedade coletiva, no bem comum e no equilíbrio socioambiental. Novo regime de propriedade, novas relações sociais e uma nova cosmovisão capaz de colocar a economia a serviço da sociedade sob a regulação de um arranjo institucional sustentado por comunidades livres e autônomas no que tange a elaboração de suas próprias leis e na organização de seus ambientes de produção material e espiritual. Nunca foi tão imprescindível a união internacional de todas as frações que compõe o universo dos subalternos. Estamos diante de um capítulo decisivo da história: ou sucumbimos nessa avalanche suicida do capital ou optamos pelos caminhos sinuosos, porém promissores, de um verdadeiro projeto de emancipação humana. Alargar nossas expectativas a partir de uma prática transformadora - e iluminada pela clareza teórica - é um bom ponto de partida para assumirmos nossos papéis de sujeitos criadores de um espaço-tempo que derrame liberdade, amor, igualdade e felicidade. Então, façamos logo a estação revolucionária!
André Pires Maciel, inverno/2016

sábado, 12 de setembro de 2015

Breve reflexão sobre duas “migrações”



Hoje, o mundo conhece, via de regra, dois tipos de “migrações”. Uma carregada de dor, outra de prazer. O problema é que a primeira é de mais e, a segunda, de menos. 
O primeiro movimento diz respeito ao terreno pantanoso e as águas turbulentas das migrações forçadas. O desenvolvimento desigual e combinado imposto pelo capitalismo, gerou desigualdades regionais tão colossais que colocam uma grande massa social em fuga frenética por medo do Estado islâmico, de Assad, da Al qaeda, do Boko Haram, da fome, da peste, do desemprego, enfim de todo tipo de mazela capitalista. Erguer barreiras à livre circulação de pessoas é bastante emblemático de um tempo imerso na névoa sinistra do obscurantismo, da intolerância e da ignorância, apesar de tantas invenções tecnológicas e condições para se elevar o nível de consciência. Fluxos liberados mesmo são as coisas, a saber, mercadorias e capitais. O mar mediterrâneo, estratégico para uma globalização verdadeiramente solidária do porvir – por se localizar entre três continentes -  se transformou num grande calvário para as populações africanas e asiáticas que tentam chegar a Europa fugindo da guerra e do terror da miséria implantados em seus continentes pelos colonizadores e imperialistas ocidentais. Não sendo um entrave suficiente, os fascistas já estão erguendo cercas para conter o avanço dos “novos bárbaros”, estes “seres inferiores”, que pretendem, conforme alguns europeus,  avançar sobre Berlim, Paris, Londres... e “roubar” não apenas  empregos, mas o status quo e promover uma islamização na terra dos entusiastas da suástica. É a maior onda imigratória desde a segunda grande guerra, com potencial para ser uma diáspora sem precedentes.
O segundo tipo de movimento migratório é o do prazer. Existe para a maioria dos humanos apenas como uma potencialidade. Quase todas as pessoas que migram o fazem por medo e/ou sofrimento, quando deveria ser por prazer e fruição de tudo que é belo e gostoso na face da Terra.  Viajar - longe de qualquer consumismo pernicioso -  é uma das formas mais sábias de uso do espaço-tempo devido aos prazeres inscritos na contemplação da paisagem, na exploração dos costumes e da culinária, bem como no mergulho nos meandros incríveis dos lugares deste planeta. Viajar ficou ainda mais imperativo se considerarmos nosso alucinante ganho de velocidade: andávamos a 16 km/h num barco a vela no longínquo 1500, hoje passeamos a 1100km/h num avião ou trem-bala. Não dá nem preguiça. Mas, e as condições materiais para isso? Estudos recentes mostram que, em face do avanço tecnológico e da ampliação da produtividade média, nada justifica uma jornada de trabalho semanal superior a 10 horas. Reduzir a jornada sem reduzir salários significaria mais tempo livre para a satisfação pessoal em atividades culturais, esportivas, de lazer e ...para viajar.
Para o “movimento migratório do sofrimento”, parte da solução é atacar a  origem do problema: os europeus poderiam  começar a pagar a dívida monumental que tem em relação aos asiáticos, aos latino-americanos e, sobretudo, aos africanos. Ou não se lembram mais do ouro e toda sorte de riquezas minerais e matérias-primas roubadas nestes continentes? Para a África, a mudança tem que ser estrutural, mas um bom começo poderia ser assim: aumentem o número de refeições ao invés de munições; ampliem as doses de remédios no lugar de bombardeios; mais flores e luzes e menos armas e breus.... Contudo, os europeus, devem receber quem quiser entrar, agora os refugiados estão desorganizados e mansos, mas um dia poderão cobrar a dívida de forma menos diplomática.
Para intensificar a “migração do prazer”, a solução é também semelhante: a partilha da materialidade erguida por bilhões de braços espoliados, esfomeados e massacrados pela tirania do capital. Abaixo o império da exploração e da opressão, porque coisas podem ser imobilizadas, fixadas no chão. Humanos não podem, são soltos, voam no infinito, são dotados do livre arbítrio e podem fluir, num movimento anárquico de realização das possibilidades que o desenvolvimento das forças produtivas geram.
Não faz sentido algum a existência de legislações que  limitam o movimento de seres humanos. Movimentar para qualquer direção, em qualquer sentido, é um direito humano. A liberdade primordial é a liberdade do movimento, nos ensina Paul Virilio. O ato de espacializar é uma prerrogativa básica das sociedades, uma condição humana. A “migração do prazer” para poucos e a “migração do sofrimento” para muitos, são expressões contraditórias de uma mesma forma capitalista de organizar a vida (e a morte). O triunfo da “migração do prazer”, isto é, sua efetivação para amplas parcelas da sociedade global ressuscitaria um vestígio de amor no mundo. Seremos melhores quando um rio, um mar, enfim, uma fronteira servir para aproximar e não para segregar.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

“A reforma agrária não foi feita quase 20 anos depois do Massacre de Carajás”'



Por Bruno Pavan e Rafael Tatemoto
O mês de abril tem sido marcado por intensas mobilizações no país este ano. A possibilidade de retirada de direitos históricos fez com que sindicalistas, partidos políticos de esquerda e organizações populares iniciassem um processo de lutas unitárias. Por conta dessas atividades, passou-se a utilizar a expressão Abril Vermelho.
Até esta terça-feira (17), pelo menos 15 fazendas foram ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no país. Com objetivo de chamar atenção para a pauta da reforma agrária, cinco fazendas foram ocupadas em Pernambuco, oito na Bahia e duas em São Paulo, nas regiões de Ribeirão Preto e Promissão. E o movimento promete novas ações durante todo o mês.
O termo Abril Vermelho foi herdado das mobilizações que o MST faz historicamente neste mês. Em 17 de abril de 1996, 21 militantes da organização foram mortos por agentes do Estado. O episódio ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás. Como lembrança do episódio e da vida dos que morreram na luta, o movimento passou a intensificar suas atividades a cada abril.
O Brasil de Fato entrevistou João Paulo Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST, para lembrar o caso de Eldorado, falar sobre a situação da reforma agrária no país, bem como sobre atual momento político vivido pelo Brasil.
Brasil de Fato – Como o MST avalia as jornadas de luta neste mês? Quais resultados espera?
Há uma expectativa muito grande de que nós possamos, primeiro, fazer uma denúncia contra a paralisia da reforma agrária em todo o país e a ofensiva do agronegócio nas terras indígenas, nas áreas de preservação ambiental, como na Amazônia, e no uso demasiado de agrotóxicos. Além disso, o aumento da criminalidade, que ainda está muito relacionado ao latifúndio improdutivo, como foi no caso do massacre de Eldorado dos Carajás e que continua atacando os sem-terra. Queremos fazer esse diálogo de denúncia com a sociedade.




O segundo grande objetivo é aproveitar esta semana e a próxima para cobrar o governo o assentamento imediato de todas as famílias que estão acampadas, que hoje são 130 mil. Reivindicamos do governo outros dois grandes temas: a construção de um PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para a reforma agrária, para resolver os problemas de infraestrutura, estradas, energia elétrica, garantir abastecimento de água e saúde nos assentamentos e uma segunda questão é a melhoria da política de crédito, que possa valorizar a produção de alimentos saudáveis da agroecologia, crédito que seja voltado para a juventude e para as mulheres, bem como uma política de agroindústria.
Por fim, achamos que é um momento oportuno para dialogar com a sociedade brasileira sobre uma nova política agrária, que produza alimentos, mas que também possa garantir que a juventude fique no campo, democratizando terras e criando uma melhoria nas condições de vida da população.
BdF - Você citou Carajás. O massacre completa 19 anos esta semana. O que mudou de 1996 até hoje?
O massacre foi uma tragédia para os camponeses brasileiros. Foi uma decisão do Estado brasileiro massacrar aqueles trabalhadores rurais. Com a repercussão do fato, nós conseguimos várias conquistas: pautar a reforma agrária na sociedade, apontar para o fato de que na Amazônia existe um problema concreto de luta pela terra e denunciar a violência no campo. O ponto negativo foi que a reforma agrária não foi feita quase 20 anos depois daquele massacre. Isso nos preocupa. Ainda tem fazendas improdutivas com jagunços com acampamentos próximos, militantes do MST sendo perseguidos, são temas que nesta semana nós queremos refletir e discutir com a sociedade.
BdF – O MST se somou às manifestações contra o Projeto de Lei 4330, que libera as terceirizações. Como esse projeto pode afetar os trabalhadores do campo?
Hoje, entre os trabalhadores como um todo, quem é mais prejudicado e tem as piores condições de serviço são justamente os trabalhadores rurais. Nós temos o exemplo da cana-de-açúcar, um trabalho com condições análogas à escravidão. Nós temos também os trabalhadores que lidam com agrotóxicos e são envenenados diariamente. O campo tem quase 3 milhões de assalariados, mas apenas 1,2 milhão têm carteira assinada. Já são precarizados por natureza. Com essa proposta, há a chance de perdemos ainda mais. Além de serem os trabalhadores com as piores condições de vida, [isso] passaria a ser legal, até esse momento nós ainda podemos denunciar como trabalho precário ou escravo.
Diante disso, nós, trabalhadores do campo, dos movimentos sociais, do movimento sindical, estamos muito preocupados com a possibilidade de aprovação desse projeto de lei, que não trará dignidade para um setor tão importante para a geração de riquezas no país, que são os trabalhadores rurais.
BdF – Como o movimento vê as nomeações do governo Dilma, com, de um lado, Kátia Abreu na Agricultura e, de outro, Patrus Ananias no Desenvolvimento Agrário e Mária Lúcia Falcón no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)?
O MST está preocupado com a situação. Estamos chegando a 100 dias do segundo mandato, e até agora só tivemos boas conversas, não houve nenhuma decisão oficial do governo de quantas famílias serão assentadas, qual será o volume de crédito agrícola. O MST não compactua com o que o governo tem feito até agora.
É importante o governo escolher bem a equipe ministerial, mas é responsabilidade da presidenta Dilma. Não queremos assumir que o problema é “porque o ministro é ruim ou o presidente do Incra é bom”. Achamos que é um problema de rumos de governo. Pode colocar qualquer um para conversar com a gente, desde que existam mecanismos e dinheiro para fazer política agrícola. Ainda assim, foi um desserviço para a esquerda brasileira e os setores progressistas a presidenta Dilma ter feito uma aliança com os setores mais conservadores na política, a Kátia Abreu na Agricultura e o Joaquim Levy conduzindo a política econômica.
Os resultados das eleições de outubro foram fruto dos setores progressistas. Essa aliança não se justifica nem pela correlação de forças, nem pelo cenário econômico. A presidenta erra, criando muitos problemas com a base que ajudou na sua reeleição. O MST vai continuar fazendo luta e denunciado os atos dessas pessoas que estão infiltradas em um governo que foi vitorioso com outra bandeira.
A escolha do Patrus e da Falcón foi importante, mas se eles não tiverem recursos e infraestrutura disponíveis para fazer a reforma agrária, eles serão desgastados. O MST não apoiará só porque são bons companheiros. O MST apoiará política, e não pessoas. A presidenta Dilma tem que dizer a que veio seu segundo mandato em relação à reforma agrária.
BdF – Foi anunciado o lançamento de um Plano Nacional de Reforma Agrária. Qual a posição do movimento?
Construir planos é bom, mas nós temos um problema real que já tem dez anos: são 130 mil famílias acampadas. Toda e qualquer conversa no próximo período passa pela resolução dessa questão emergencial. A reforma agrária é uma feijoada, precisa de tempero, um conjunto de ingredientes, mas se não houver o feijão, que é a terra, não passa de uma boa ideia. Se não resolver o problema das famílias acampadas, dificilmente os demais pontos irão resolver a demanda exigida pelo movimento. A condição para haver um diálogo bom e para que a gente possa avançar é um programa massivo de assentamento para as famílias acampadas.
Fonte: brasildefato.com.br. Acessado em 17/04/2015

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

BRICS para quem?


Por Nathalie Beghin
Os BRICS – acrônimo que diz respeito ao agrupamento de cinco países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – representam uma incógnita. Por um lado, expressam a insatisfação de economias que vêm ganhando destaque no cenário internacional com a atual conformação da governança global. São atores relevantes no tabuleiro político internacional cujas vozes nem sempre são escutadas a contento por aqueles que ocupam os espaços de poder mundial, especialmente Estados Unidos, União Europeia e Japão, e desse ponto de vista têm sido uma articulação geopolítica relevante no cenário mundial. Analistas preveem que em 2015 os BRICS serão responsáveis por cerca de um quarto do PIB mundial e poderão vir a ser as potências globais de 2050.
Mas, por outro lado, o expressivo crescimento desses países não tem se revertido em melhorias das condições de vida de seus povos à imagem e semelhança da pujança econômica. Pior: com exceção do Brasil, as desigualdades sociais aumentaram significativamente no bloco. Ou seja, a riqueza gerada não está sendo distribuída com justiça social, ao contrário, são poucos o que dela se beneficiam.
Ainda que a pobreza tenha diminuído em praticamente todos os casos, especialmente na China, os demais indicadores sociais ostentados por esses países deixam muito a desejar: a informalidade no mercado de trabalho atinge mais de 40% da população economicamente ativa de Brasil, Índia e África do Sul. Com isso, milhões de trabalhadores não têm acesso aos direitos básicos atrelados ao trabalho como seguro desemprego, aposentadoria e pensão, licenças maternidade e paternidade, entre outros, estando longe do conceito de trabalho decente consolidado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. São milhões de homens e mulheres largados a sua própria sorte, dependendo da assistência privada, da ajuda mútua ou de programas pontuais eventualmente implementados pelos seus governos.
A baixa cobertura de sistemas de proteção social se reflete nos elevados índices de mortalidade infantil, pouco compatíveis com o tamanho das economias desses países. No Brasil e na China esses índices estão em torno de 20 mortes por mil crianças nascidas vivas, mais de seis vezes os valores apresentados por países como Japão, Suécia e Noruega – menos de 3 por mil. Na Índia e na África do Sul a mortalidade infantil atinge patamares assustadores, de mais de 60 por mil. Ainda que a Rússia se encontre em melhor posição, os indicadores de mortalidade infantil são superiores a 10 por mil. Por outro lado, a esperança de vida ao nascer na Rússia é da ordem de 68 anos, não muito distante do verificado para a Índia, de cerca de 65 anos. Nos países nórdicos, esses valores são superiores a oitenta anos. A esperança de vida ao nascer é uma excelente medição do acesso (ou não) das populações a direitos básicos como alimentação, saúde, saneamento, habitação e educação, entre outros. No Brasil e na China, onde as políticas públicas são um pouco mais estruturadas, a esperança de vida passa dos 73 anos. Na África do Sul, com enorme dívida social, vive-se, em média, pouco mais de 50 anos.
Os níveis educacionais não apresentam perfil muito diferente: em nenhum dos cinco países os adultos apresentam pelo menos 10 anos de estudo em média. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse indicador é superior a 13 anos. Na Rússia o indicador é de cerca de 9, no Brasil e na China gira em torno de 7 e na Índia, os adultos têm, em média, apenas 4 anos de estudo.
Diante desse quadro, a pergunta que não quer calar é: BRICS para quem? Quem se beneficia dessa extraordinária riqueza que vem sendo gerada nos últimos anos?
Certamente que a absoluta maioria dos povos dos BRICS não. Se bem é verdade que os indicadores sociais vêm melhorando, o ritmo é mais o reflexo da inércia do que resultado de vultosos investimentos destinados a redistribuir os ganhos obtidos por um crescimento que impressiona a todos. O modelo de desenvolvimento adotado por esses países até o momento reproduz desigualdade. Mesmo no Brasil, onde a situação melhorou como resultado de políticas públicas redistributivas implementadas nos últimos anos, o país continua pertencendo ao vergonhoso clube das sociedades mais desiguais do mundo.
Daí a urgência das organizações e movimentos sociais desses diferentes países pressionarem seus governos, individualmente, e o bloco como um todo, para que adotem medidas de efetiva inclusão social e universalização dos direitos humanos. Entendemos que o desenho e a implementação de políticas públicas dessa natureza, tanto nacionalmente como internacionalmente, devem levar em conta as demandas da sociedade por meio de mecanismos de participação social institucionalizados. Nesses espaços, a relação público/privado se estabelece, materializando princípios da democracia representativa e participativa e, consequentemente, assegurando a predominância do interesse público.
O Brasil que, desse ponto de vista se destaca no cenário internacional, poderia ser portador dessa mensagem atuando, simultaneamente, em duas frentes: internamente, criando o Conselho Nacional da Política Externa Brasileira, locus do debate com a sociedade sobre sua inserção nos BRICS, entre outros assuntos atrelados à política externa nacional; e, internacionalmente, levando ao bloco a proposta de criação de espaço institucional de participação social envolvendo organizações e movimentos sociais dos cinco países. Essa proposta é factível, uma vez que os BRICS já criaram o Fórum Empresarial e o Fórum Acadêmico. Se os empresários e os acadêmicos têm voz, não há nada que justifique não estender essa prerrogativa aquelas e aqueles que lutam há décadas por um mundo mais justo e inclusivo, economicamente, socialmente e ambientalmente. Talvez assim os BRICS consigam ser os “BRICS dos povos”, os “BRICS dos 99%”.
*Nathalie Beghin é integrante do Instituto de Estudos Socioeconomicos (INESC), da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP) e do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI)
Fonte: cartacapital.com.br

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Na América Latina, baixo crescimento frustra as classes médias

Há algumas semanas no Uruguai, um internauta que se identifica como Juan Clasemedia denuncia na internet as "desventuras" vividas pelas classes médias da América Latina, que se sentem frustradas com a deficiência dos serviços públicos e preocupadas com a lentidão do crescimento econômico na região.
Juan Clasemedia, que "espera três meses para se consultar com um médico especialista" e que "a cada domingo paga mais caro no supermercado", conta seus dramas de classe em um vídeo de animação publicado na internet. O personagem fictício, que tem conta no Twitter, foi criado pelo pequeno Partido Independente uruguaio, que aumenta sua base aproveitando-se do descontentamento desta camada da sociedade.
Em dez anos, mais de 50 milhões de latinoamericanos saíram da pobreza e ganharam status de classe média, com rendas individuais entre 10 e 50 dólares por dia, segundo a definição do Banco Mundial.
"O que chamamos de classe média é trinta e muitos por cento da população, que agora tem a capacidade econômica e o poder aquisitivo para comprar bens duráveis, geladeiras, televisões, automóveis", explica o equatoriano Augusto de la Torre, economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina.
A emergência da classe média resultou, por exemplo, no boom de vendas de motos no nordeste do Brasil e na grande procura por aulas de inglês on-line na Venezuela, além de uma explosão no número de usuários de internet e de smartphones.
Mas, por outro lado, gerou frustrações, um mecanismo lógico, segundo o economista: "o poder aquisitivo vem na frente da qualidade dos serviços públicos".
"A nossa vida melhorou, claro que sim", disse à AFP Cida Alves, dona de casa brasileira de 46 anos no bairro de Itaquera, São Paulo. "Mas a saúde pública, por exemplo, é terrível, nunca temos atendimento rápido", reclamou.
As manifestações que levaram mais de 1 milhão de brasileiros às ruas em junho de 2013 para exigir serviços públicos de qualidade, também foram fortes no Chile, na Colômbia e na Venezuela.
"A classe média se transforma em (um grupo de) cidadãos demandantes", observa Gabriel Kessler, sociólogo argentino da Universidade de La Plata, porque "os bens coletivos como educação, saúde, transportes, não melhoram da mesma forma que o seu acesso ao consumo".
Consequentemente, aumentam as críticas: "Apostou-se muito no consumo individual e não houve melhoras na mesma proporção em infraestruturas e bens coletivos, como saúde e educação".
A frustração da classe média pode aumentar com a desaceleração da economia. Brasil e Argentina acabam de entrar em recessão, e o Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um crescimento regional de 1,3% em 2014, o mais fraco desde 2009.
Esse é um contexto preocupante para uma classe média já frágil, destaca Olivier Dabène, professor da faculdade de Ciência Política em Paris e presidente do Observatório Político para América Latina e Caribe (Opalc). "Não é o que chamamos na Europa de classe média", explica, mas de "pessoas que tiveram acesso ao emprego formal e permanecem em uma situação vulnerável podendo voltar à pobreza caso percam o emprego".
"São vulneráveis, já que essas pessoas vivem um frenesi de consumismo e estão endividadas", explica. "Vimos muitas reportagens sobre algumas que, de uma só vez, podem comprar uma geladeira e uma moto. Mas não é explicado que, para isso, se endividaram com 12 parcelas de crediário, e que às vezes devolvem o produto na décima mensalidade porque não podem pagar".
Do ponto de vista social, o Banco Mundial não teme "uma reversão", mas, sim, uma "estagnação", o que parece frustrar uma classe média acostumada a progredir rapidamente. "Estamos condenados a anos de transição difíceis, em que haverá tensão entre as expectativas sociais e a capacidade de atendê-las", diz Augusto de la Torre, que aponta para uma ênfase na produtividade e na educação para reativar o crescimento.
Por Katell Abiven

Fonte: www.cartacapital.com.br