sábado, 12 de setembro de 2015

Breve reflexão sobre duas “migrações”



Hoje, o mundo conhece, via de regra, dois tipos de “migrações”. Uma carregada de dor, outra de prazer. O problema é que a primeira é de mais e, a segunda, de menos. 
O primeiro movimento diz respeito ao terreno pantanoso e as águas turbulentas das migrações forçadas. O desenvolvimento desigual e combinado imposto pelo capitalismo, gerou desigualdades regionais tão colossais que colocam uma grande massa social em fuga frenética por medo do Estado islâmico, de Assad, da Al qaeda, do Boko Haram, da fome, da peste, do desemprego, enfim de todo tipo de mazela capitalista. Erguer barreiras à livre circulação de pessoas é bastante emblemático de um tempo imerso na névoa sinistra do obscurantismo, da intolerância e da ignorância, apesar de tantas invenções tecnológicas e condições para se elevar o nível de consciência. Fluxos liberados mesmo são as coisas, a saber, mercadorias e capitais. O mar mediterrâneo, estratégico para uma globalização verdadeiramente solidária do porvir – por se localizar entre três continentes -  se transformou num grande calvário para as populações africanas e asiáticas que tentam chegar a Europa fugindo da guerra e do terror da miséria implantados em seus continentes pelos colonizadores e imperialistas ocidentais. Não sendo um entrave suficiente, os fascistas já estão erguendo cercas para conter o avanço dos “novos bárbaros”, estes “seres inferiores”, que pretendem, conforme alguns europeus,  avançar sobre Berlim, Paris, Londres... e “roubar” não apenas  empregos, mas o status quo e promover uma islamização na terra dos entusiastas da suástica. É a maior onda imigratória desde a segunda grande guerra, com potencial para ser uma diáspora sem precedentes.
O segundo tipo de movimento migratório é o do prazer. Existe para a maioria dos humanos apenas como uma potencialidade. Quase todas as pessoas que migram o fazem por medo e/ou sofrimento, quando deveria ser por prazer e fruição de tudo que é belo e gostoso na face da Terra.  Viajar - longe de qualquer consumismo pernicioso -  é uma das formas mais sábias de uso do espaço-tempo devido aos prazeres inscritos na contemplação da paisagem, na exploração dos costumes e da culinária, bem como no mergulho nos meandros incríveis dos lugares deste planeta. Viajar ficou ainda mais imperativo se considerarmos nosso alucinante ganho de velocidade: andávamos a 16 km/h num barco a vela no longínquo 1500, hoje passeamos a 1100km/h num avião ou trem-bala. Não dá nem preguiça. Mas, e as condições materiais para isso? Estudos recentes mostram que, em face do avanço tecnológico e da ampliação da produtividade média, nada justifica uma jornada de trabalho semanal superior a 10 horas. Reduzir a jornada sem reduzir salários significaria mais tempo livre para a satisfação pessoal em atividades culturais, esportivas, de lazer e ...para viajar.
Para o “movimento migratório do sofrimento”, parte da solução é atacar a  origem do problema: os europeus poderiam  começar a pagar a dívida monumental que tem em relação aos asiáticos, aos latino-americanos e, sobretudo, aos africanos. Ou não se lembram mais do ouro e toda sorte de riquezas minerais e matérias-primas roubadas nestes continentes? Para a África, a mudança tem que ser estrutural, mas um bom começo poderia ser assim: aumentem o número de refeições ao invés de munições; ampliem as doses de remédios no lugar de bombardeios; mais flores e luzes e menos armas e breus.... Contudo, os europeus, devem receber quem quiser entrar, agora os refugiados estão desorganizados e mansos, mas um dia poderão cobrar a dívida de forma menos diplomática.
Para intensificar a “migração do prazer”, a solução é também semelhante: a partilha da materialidade erguida por bilhões de braços espoliados, esfomeados e massacrados pela tirania do capital. Abaixo o império da exploração e da opressão, porque coisas podem ser imobilizadas, fixadas no chão. Humanos não podem, são soltos, voam no infinito, são dotados do livre arbítrio e podem fluir, num movimento anárquico de realização das possibilidades que o desenvolvimento das forças produtivas geram.
Não faz sentido algum a existência de legislações que  limitam o movimento de seres humanos. Movimentar para qualquer direção, em qualquer sentido, é um direito humano. A liberdade primordial é a liberdade do movimento, nos ensina Paul Virilio. O ato de espacializar é uma prerrogativa básica das sociedades, uma condição humana. A “migração do prazer” para poucos e a “migração do sofrimento” para muitos, são expressões contraditórias de uma mesma forma capitalista de organizar a vida (e a morte). O triunfo da “migração do prazer”, isto é, sua efetivação para amplas parcelas da sociedade global ressuscitaria um vestígio de amor no mundo. Seremos melhores quando um rio, um mar, enfim, uma fronteira servir para aproximar e não para segregar.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

“A reforma agrária não foi feita quase 20 anos depois do Massacre de Carajás”'



Por Bruno Pavan e Rafael Tatemoto
O mês de abril tem sido marcado por intensas mobilizações no país este ano. A possibilidade de retirada de direitos históricos fez com que sindicalistas, partidos políticos de esquerda e organizações populares iniciassem um processo de lutas unitárias. Por conta dessas atividades, passou-se a utilizar a expressão Abril Vermelho.
Até esta terça-feira (17), pelo menos 15 fazendas foram ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no país. Com objetivo de chamar atenção para a pauta da reforma agrária, cinco fazendas foram ocupadas em Pernambuco, oito na Bahia e duas em São Paulo, nas regiões de Ribeirão Preto e Promissão. E o movimento promete novas ações durante todo o mês.
O termo Abril Vermelho foi herdado das mobilizações que o MST faz historicamente neste mês. Em 17 de abril de 1996, 21 militantes da organização foram mortos por agentes do Estado. O episódio ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás. Como lembrança do episódio e da vida dos que morreram na luta, o movimento passou a intensificar suas atividades a cada abril.
O Brasil de Fato entrevistou João Paulo Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST, para lembrar o caso de Eldorado, falar sobre a situação da reforma agrária no país, bem como sobre atual momento político vivido pelo Brasil.
Brasil de Fato – Como o MST avalia as jornadas de luta neste mês? Quais resultados espera?
Há uma expectativa muito grande de que nós possamos, primeiro, fazer uma denúncia contra a paralisia da reforma agrária em todo o país e a ofensiva do agronegócio nas terras indígenas, nas áreas de preservação ambiental, como na Amazônia, e no uso demasiado de agrotóxicos. Além disso, o aumento da criminalidade, que ainda está muito relacionado ao latifúndio improdutivo, como foi no caso do massacre de Eldorado dos Carajás e que continua atacando os sem-terra. Queremos fazer esse diálogo de denúncia com a sociedade.




O segundo grande objetivo é aproveitar esta semana e a próxima para cobrar o governo o assentamento imediato de todas as famílias que estão acampadas, que hoje são 130 mil. Reivindicamos do governo outros dois grandes temas: a construção de um PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para a reforma agrária, para resolver os problemas de infraestrutura, estradas, energia elétrica, garantir abastecimento de água e saúde nos assentamentos e uma segunda questão é a melhoria da política de crédito, que possa valorizar a produção de alimentos saudáveis da agroecologia, crédito que seja voltado para a juventude e para as mulheres, bem como uma política de agroindústria.
Por fim, achamos que é um momento oportuno para dialogar com a sociedade brasileira sobre uma nova política agrária, que produza alimentos, mas que também possa garantir que a juventude fique no campo, democratizando terras e criando uma melhoria nas condições de vida da população.
BdF - Você citou Carajás. O massacre completa 19 anos esta semana. O que mudou de 1996 até hoje?
O massacre foi uma tragédia para os camponeses brasileiros. Foi uma decisão do Estado brasileiro massacrar aqueles trabalhadores rurais. Com a repercussão do fato, nós conseguimos várias conquistas: pautar a reforma agrária na sociedade, apontar para o fato de que na Amazônia existe um problema concreto de luta pela terra e denunciar a violência no campo. O ponto negativo foi que a reforma agrária não foi feita quase 20 anos depois daquele massacre. Isso nos preocupa. Ainda tem fazendas improdutivas com jagunços com acampamentos próximos, militantes do MST sendo perseguidos, são temas que nesta semana nós queremos refletir e discutir com a sociedade.
BdF – O MST se somou às manifestações contra o Projeto de Lei 4330, que libera as terceirizações. Como esse projeto pode afetar os trabalhadores do campo?
Hoje, entre os trabalhadores como um todo, quem é mais prejudicado e tem as piores condições de serviço são justamente os trabalhadores rurais. Nós temos o exemplo da cana-de-açúcar, um trabalho com condições análogas à escravidão. Nós temos também os trabalhadores que lidam com agrotóxicos e são envenenados diariamente. O campo tem quase 3 milhões de assalariados, mas apenas 1,2 milhão têm carteira assinada. Já são precarizados por natureza. Com essa proposta, há a chance de perdemos ainda mais. Além de serem os trabalhadores com as piores condições de vida, [isso] passaria a ser legal, até esse momento nós ainda podemos denunciar como trabalho precário ou escravo.
Diante disso, nós, trabalhadores do campo, dos movimentos sociais, do movimento sindical, estamos muito preocupados com a possibilidade de aprovação desse projeto de lei, que não trará dignidade para um setor tão importante para a geração de riquezas no país, que são os trabalhadores rurais.
BdF – Como o movimento vê as nomeações do governo Dilma, com, de um lado, Kátia Abreu na Agricultura e, de outro, Patrus Ananias no Desenvolvimento Agrário e Mária Lúcia Falcón no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)?
O MST está preocupado com a situação. Estamos chegando a 100 dias do segundo mandato, e até agora só tivemos boas conversas, não houve nenhuma decisão oficial do governo de quantas famílias serão assentadas, qual será o volume de crédito agrícola. O MST não compactua com o que o governo tem feito até agora.
É importante o governo escolher bem a equipe ministerial, mas é responsabilidade da presidenta Dilma. Não queremos assumir que o problema é “porque o ministro é ruim ou o presidente do Incra é bom”. Achamos que é um problema de rumos de governo. Pode colocar qualquer um para conversar com a gente, desde que existam mecanismos e dinheiro para fazer política agrícola. Ainda assim, foi um desserviço para a esquerda brasileira e os setores progressistas a presidenta Dilma ter feito uma aliança com os setores mais conservadores na política, a Kátia Abreu na Agricultura e o Joaquim Levy conduzindo a política econômica.
Os resultados das eleições de outubro foram fruto dos setores progressistas. Essa aliança não se justifica nem pela correlação de forças, nem pelo cenário econômico. A presidenta erra, criando muitos problemas com a base que ajudou na sua reeleição. O MST vai continuar fazendo luta e denunciado os atos dessas pessoas que estão infiltradas em um governo que foi vitorioso com outra bandeira.
A escolha do Patrus e da Falcón foi importante, mas se eles não tiverem recursos e infraestrutura disponíveis para fazer a reforma agrária, eles serão desgastados. O MST não apoiará só porque são bons companheiros. O MST apoiará política, e não pessoas. A presidenta Dilma tem que dizer a que veio seu segundo mandato em relação à reforma agrária.
BdF – Foi anunciado o lançamento de um Plano Nacional de Reforma Agrária. Qual a posição do movimento?
Construir planos é bom, mas nós temos um problema real que já tem dez anos: são 130 mil famílias acampadas. Toda e qualquer conversa no próximo período passa pela resolução dessa questão emergencial. A reforma agrária é uma feijoada, precisa de tempero, um conjunto de ingredientes, mas se não houver o feijão, que é a terra, não passa de uma boa ideia. Se não resolver o problema das famílias acampadas, dificilmente os demais pontos irão resolver a demanda exigida pelo movimento. A condição para haver um diálogo bom e para que a gente possa avançar é um programa massivo de assentamento para as famílias acampadas.
Fonte: brasildefato.com.br. Acessado em 17/04/2015